Joelson - Artigo Técnico 1


Por Gilmar Ferreira Mendes

 

A importância da Constituição de 1998 para nossa estabilidade democrática é inegável. O período de 1891 a 1988 foi marcado por sucessivas interrupções, tentativas de golpe e comprometimento da democracia, mas, sob a Carta de 1988, estamos vivendo, com todas as suas vicissitudes e problemas, o mais longo período de normalidade institucional de nossa história republicana.

Porém, relativamente ao sistema político eleitoral, parece que não conseguimos de fato avançar, nem sugerir mudanças adequadas. Hoje enfrentamos inúmeras adversidades que são, em geral, fruto do modelo de sistema proporcional criado pelas instituições políticas brasileiras. É um sistema singular, que mereceu diversos estudos e cumpriu uma missão importante. Foi útil para a solução de sérios problemas políticos, mas que vem dando sinais de exaustão.

Percebe-se também uma acentuada deficiência dos mecanismos de fiscalização e de controle das contas de campanha. Reiterados escândalos de corrupção na nossa história constitucional recente têm exposto as dificuldades de se equilibrarem as relações entre poder político e econômico na realidade brasileira.

No ano passado, tentativas de superação dessas insuficiências foram buscadas em relevantes inovações legislativas e em decisões históricas do Supremo Tribunal Federal (STF). A Lei 13.165/2015 trouxe significativas modificações no processo eleitoral, como a definição de limites máximos de gastos de campanhas. Paralelamente, decisões do Supremo, como a que declarou a inconstitucionalidade das doações de pessoas jurídicas às campanhas[1] e a que proibiu a realização de doações ocultas[2],também representam mudanças paradigmáticas que certamente reformularão a dinâmica de custeio das empreitadas dos candidatos às eleições municipais deste ano.

No entanto, às vésperas da realização de um novo pleito, o êxito dessas reformas ainda nos parece de difícil, senão de impossível, previsibilidade. Além das dúvidas habituais sobre a aplicabilidade das novas regras, há vacilações sobre a própria viabilidade do modelo que se pretende adotar. A única certeza que paira entre nós é a de que, nos próximos meses, a Justiça Eleitoral passará por um genuíno período de experimentalismo institucional.

De toda sorte, cumpre a nós a contínua tarefa de perquirir a real potencialidade transformadora das soluções que serão implementadas. É com esse intuito que o presente artigo explora como as transformações da Lei 13.165/2015 e as mencionadas decisões do Supremo, que remodelarão significativamente o nosso sistema, trazendo desafios homéricos às nossas instituições.

A Lei 13.165/2015, como mencionado, imprimiu modificações profundas no processo eleitoral. Merece nota, por exemplo, a nova redação dada ao art. 224, § 3º, do Código Eleitoral, que institui a obrigatoriedade de realização de novas eleições quando decisão da Justiça Eleitoral importar no indeferimento do registro, na cassação de diploma ou na perda do mandato de candidato eleito em pleito majoritário. O dispositivo visa conter a litigiosidade entre os rivais de campanha na disputa pelo cargo, mesmo após o encerramento do período eleitoral, e tenta amenizar as instabilidades políticas que esse tipo de vacância costuma implicar.

Também é relevante a regra que estabelece que, nas eleições submetidas ao sistema proporcional, os candidatos precisarão obter votos equivalentes a, no mínimo, 10%  do quociente eleitoral para serem eleitos (artigo 108 do Código Eleitoral, alterado pela Lei 13.165/2015). O dispositivo constitui um reconhecimento das deficiências do nosso sistema proporcional de lista aberta, que – a despeito de suas virtudes – dá margens a distorções, como os conhecidos casos de figuras públicas cujo sucesso no pleito viabiliza a eleição de colegas de partido pouco votados.[3]

Além dessas alterações macroestruturais, a Lei 13.165/2015 previu mudanças no regime jurídico da propaganda eleitoral. O diploma promoveu alteração no artigo 240 do Código Eleitoral para fixar que, somente a partir de 15 de agosto, estarão autorizadas as propagandas. Atenta à nova realidade de promoção da imagem dos candidatos antes mesmo do início do pleito em espaços antes não regulados, a lei disciplinou ainda a propaganda eleitoral antecipada em eventos partidários prévios e na divulgação de posicionamentos pessoais em redes sociais (artigo 36-A, incisos III e V, do Código Eleitoral, alterados pela Lei 13.165/2015).

A despeito da relevância dessas inovações, parece-nos possível dizer que a principal e paradigmática transformação trazida pela lei diz respeito à definição de tetos de gastos para as campanhas eleitorais. Os artigos 5º e 6º da Lei 13.165/2015 estabelecem claros limites aos gastos de campanha nas eleições a cargos majoritários e proporcionais.

Por conseguinte, a fixação desses limites traz desafios homéricos à Justiça Eleitoral neste ano. O Tribunal Superior Eleitoral e os Tribunais Regionais Eleitorais terão que ser diligentes na divulgação dos limites de gastos de campanha estabelecidos pela nova legislação para os 5.561 municípios brasileiros.

Além das dificuldades em se garantir a obediência aos limites de gastos estabelecidos, também preocupa o fato de a legislação ter fixado reduções tão drásticas nos custos de campanha. O parágrafo único do artigo 5º da Lei 13.165/2015 preceitua, por exemplo, que, em regra, nos Municípios de até dez mil eleitores, o limite de gastos será de R$ 100 mil para prefeito e de R$ 10 mil para vereador. Principalmente no contexto de eleições municipais, marcadas pelo grande acirramento das disputas, é provável que o ânimo de violar a legislação seja permanente.

Esse cenário de regulamentação estrita demanda das nossas instituições um rígido controle de contas de campanha, num universo esperado de aproximadamente 540.000 (quinhentos e quarenta mil) candidatos. Para que isso se concretize da forma efetiva, a própria sociedade terá que empenhar esforços no mister fiscalizatório. O apoio de entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil e o Ministério Público será imprescindível nessa tarefa.

Vislumbrando esse desafio, o TSE tratará com especial cautela a questão da transparência nas contas de campanha. Registre-se, a propósito, que, no ano passado, o Plenário do Tribunal aprovou a Resolução 23.460, de 15 de dezembro de 2015, a qual estabelece o chamado “Calendário da Transparência”. Tal calendário consolida regras rígidas de publicidade de atos relacionados à fiscalização do sistema de votação eletrônica e à auditoria de funcionamento das urnas eletrônicas por meio de votação paralela.

 

Ao lado dessas proeminentes transformações legislativas, decisões recentes do STF também deram novo significado à dinâmica de financiamento das campanhas eleitorais.

No julgamento da ADI 5.394/DF, por exemplo, o Supremo entendeu que a realização de doações ocultas às campanhas eleitorais seria incompatível com o princípio da transparência, que orienta a atuação da Administração Pública. A decisão não guarda maiores controvérsias, até mesmo porque a individualização das doações já era prática adotada nas doações registradas no âmbito da Justiça Eleitoral nos anos anteriores. De todo modo, a proibição de doações anônimas é importante no combate às fraudes nas prestações de contas de campanha dos partidos. Em um regime de fixação legal de tetos para gastos de campanha, a decisão do Supremo mostra-se especialmente relevante.

A revolução mais paradigmática em matéria de financiamento de campanhas, contudo, foi delineada no julgamento da ADI4.650/DF. Como sabemos, o modelo de financiamento dos partidos vigente até o ano passado admitia a doação privada efetivada por pessoas físicas ou jurídicas, sem que se assegurasse qualquer benefício fiscal. A doação deveria ser efetuada e registrada de forma nominal, independentemente do seu valor.[4]

Esse regime, no entanto, teve sua constitucionalidade recentemente impugnada na mencionada Ação Direta de Inconstitucionalidade, proposta pela Ordem dos Advogados do Brasil. Na ação, a OAB pleiteava, entre outros pontos, a declaração de inconstitucionalidade de dispositivos da Lei 504/1997 e da Lei 9.096/1995 que autorizavam que pessoas jurídicas realizassem doações a partidos políticos e a campanhas eleitorais.

A proposição da ADI evocava um clamor público de combate à corrupção. A tese defendida pelos autores da ação baseava-se no pressuposto de que a proibição de doações de pessoas jurídicas às campanhas seria um passo fundamental para desbaratar a troca de favores políticos entre governantes e financiadores de campanhas eleitorais.

Ao analisar o caso, o STF, por maioria de votos, julgou procedente em parte a ação, para declarar a inconstitucionalidade dos dispositivos legais que autorizavam as doações de pessoas jurídicas (empresas) às campanhas eleitorais. Ficaram vencidos, no ponto, os ministros Teori Zavascki, Celso de Mello e Gilmar Mendes. O STF determinou, inclusive, que a execução dessa decisão “aplica-se às eleições de 2016 e seguintes, a partir da Sessão de Julgamento, independentemente da publicação do acórdão’, conforme ata da 29ª sessão extraordinária de 17 de setembro de 2015”.

O Congresso Nacional emitiu sinais de que poderia aprovar emenda constitucional restabelecendo as doações de pessoas jurídicas às campanhas eleitorais, o que traria outra hipótese de diálogo institucional bastante interessante à cena jurídico-política. De toda sorte, a legislação atual admite apenas as doações de pessoas físicas, seja para candidatos, seja para partidos políticos, nos termos das Leis 9.096/1995 e 9.504/1997, com as modificações promovidas pela Lei 13.165/2015.

Todavia, não nos parece crível a ideia de que a proibição de doações de pessoas jurídicas às candidaturas represente uma solução para as deficiências do atual modelo de financiamento de partidos políticos. Episódios de corrupção, como o que resultou no impeachment do presidente Collor e, mais recentemente, nos denominados casos Mensalão e Petrolão, diagnosticam um quadro maior de vulnerabilidades do sistema eleitoral que precisa ser endereçado por reformas mais profundas do que a mera proibição de doações de pessoas jurídicas a partidos políticos.

De fato, a questão não parece estar propriamente no modelo adotado pela legislação brasileira quanto à origem das doações de campanha, mas sim historicamente na ausência de políticas institucionais que possibilitem efetivo controle dos recursos arrecadados e dos gastos durante o pleito. São notórias as limitações dos nossos mecanismos atuais de controle e de fiscalização de contas de campanha. O prazo exíguo para o exame da contabilidade e da documentação relativa à movimentação de vultosas quantias e a reduzida estrutura de servidores da Justiça Eleitoral são só alguns dos obstáculos que enfrentamos.

Nesse cenário, tendo em vista que o barateamento do custo de campanhas parece ser ideia ainda longe de ser implementada com alguma efetividade, é possível dizer que a restrição das doações às pessoas físicas acarretará, sem nenhuma dúvida: i) a clandestinidade de doações de pessoas jurídicas, por meio do caixa 2; e ii) estímulo à prática sistemática de crimes de falsidade, com o uso de CPFs de “laranjas”. Em outras palavras, pouco importando a origem dos recursos arrecadados (doação de pessoa física, de pessoa jurídica ou recursos do Fundo Partidário), estamos diante de um sério indício de gasto simulado nos pleitos vindouros.

Ademais, a almejada redução de gastos de campanha com a exclusão das pessoas jurídicas como potenciais doadoras no processo eleitoral desconsidera que a legislação eleitoral em vigor possui vasto leque de ferramentas de aproximação entre candidatos e eleitores, a saber: i) participação em entrevistas, programas e debates antes do registro de candidatura; ii) propaganda em bens particulares (faixas, placas, cartazes, pinturas e inscrições); iii) colocação de cavaletes, bonecos, cartazes e mesas para a distribuição de material de propaganda ao longo das vias públicas; iv) distribuição de folhetos, volantes e outros impressos; v) realização de comícios e utilização de aparelhagem de som; vi) realização de carreata com carro de som; vii) criação e divulgação de jingles; viii) divulgação de propaganda paga na imprensa escrita, respeitados os limites fixados em lei; ix) realização de propaganda em rádio e em televisão; x) realização de propaganda na internet, entre outras inúmeras formas de propaganda.

É inquestionável que a utilização desses mecanismos de propaganda exige recursos que não são suportáveis pelo Fundo Partidário. Tampouco serão completamente pagos por doações lícitas de pessoas físicas. Isso pode estimular, consequentemente, que os candidatos busquem alternativas à margem da legislação eleitoral, pois os custos continuarão os mesmos, reduzindo apenas formalmente quem poderá participar do processo eleitoral na condição de doador, equação que certamente chegará à Justiça Eleitoral para solução, em milhares de processos judiciais.

Examinadas as novidades que em breve desafiarão as nossas instituições, é importante frisar que, na atual conjuntura política nacional, qualquer tipo de reforma política deve ser muito bem analisada e conduzida com cuidado.

Para nós, resta evidente que a consecução de uma reforma eleitoral exitosa possivelmente requer muito mais do que a mera definição de limites de gastos de campanha ou a proibição de doações feitas por pessoas jurídicas a partidos políticos. Ainda precisamos, e com urgência, pensar em soluções macroestruturais que passem necessariamente por mudanças no sistema eleitoral, no sistema partidário, na legislação eleitoral e, consequentemente, pela reestruturação dos órgãos de fiscalização do processo eleitoral, em especial a Justiça Eleitoral e o Ministério Público Eleitoral.

Nossa Constituição Federal de 1988 marca a consolidação da democracia brasileira, da estabilidade de nossas instituições, e tem demonstrado força normativa capaz de regular, com folga, inclusive situações extremas. No entanto, é preciso evitar concepções aventureiras, que podem comprometer, definitivamente, o capital institucional acumulado com muito sacrifício.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).

[1]  ADI 4650, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 24.2.2016.
[2] ADI 5394, Rel. Min. Teori Zavascki, DJe 19.11.2015.
[3] O sistema proporcional de lista aberta sem quóruns mínimos permitia, entre nós, que um candidato sem nenhum voto nominal fosse eleito. Tal como registra Walter Costa Porto, nas eleições de 2 de dezembro de 1945, por exemplo, o Partido Social Democrático apresentou dois candidatos a deputado federal no Território do Acre, Hugo Ribeiro Carneiro e Hermelindo de Gusmão Castelo Branco Filho. O primeiro candidato obteve 3.775 votos; o segundo, nenhum voto nominal. Não obstante, o partido alcançou o quociente eleitoral, com excedente de 1.077 votos. O critério do “maior número de votos” do partido, em caso de “sobra”, acabou por conferir mandato a candidato que não obtivera sequer um voto. Nesse sentido, cf. PORTO, Walter Costa. A mentirosa urna. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 157.
[4] Scott Mainwaring registra que a eleição de um deputado federal, pelo Estado de São Paulo, em 1986, teria atingido cifra próxima ou superior a US$ 1.000.000,00. Anota o autor que isso colocaria as eleições de São Paulo entre as mais caras do mundo – fato que indicaria o quanto o poder político é valorizado no Brasil (MAINWARING, Scott. Políticos, partidos e sistemas eleitorais. Estudos Eleitorais, TSE n. 2, p. 335 (343), maio/ago. 1997, p. 335).

 

Fonte CONJUR

 

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